domingo, 14 de dezembro de 2025

"A gente estuda pra entender a vida. Mas quem me ensinou a viver foi um cachorro caramelo"


 Quando eu entrei na faculdade, achei que o mais difícil seria entender as fórmulas, as provas, as noites sem dormir.

Mas ninguém me contou que o pior seria lidar com o silêncio da solidão.

O tipo de silêncio que grita dentro da gente, mesmo no meio da cidade barulhenta.

Eu morava sozinha num quitinete perto da faculdade.

Um cômodo, uma mesa, um colchão e uma vontade enorme de provar que eu conseguiria.

Mas, às vezes, provar algo pro mundo dói mais do que admitir que a gente precisa de companhia.

Foi numa terça-feira, voltando da aula, que vi ele pela primeira vez.

Chovia fraco, e ele estava deitado na calçada, encostado no muro da padaria.

Caramelo, magro, com o olhar de quem já tinha ouvido muitos “sai daqui”.

Parei, abri a mochila e dei metade do meu pão com mortadela.

Ele comeu, abanou o rabo devagar e ficou me olhando, como quem guarda o rosto de quem, por um instante, foi gentil.

Nos dias seguintes, ele estava sempre lá.

Mesmo lugar, mesma hora.

Eu passava e ele levantava as orelhas.

Às vezes me seguia até o portão do prédio, mas parava na calçada, como se soubesse que não podia entrar.

Comecei a levar ração. Depois, água. Depois, conversa.

“Oi, menino, dormiu bem?”

E ele respondia com aquele olhar que diz tudo sem precisar de palavra.

Um dia, chovia forte.

Tão forte que a rua parecia um rio.

Eu olhei da janela e pensei nele.

Desci sem pensar duas vezes.

Quando cheguei à padaria, lá estava: encolhido, tremendo, o corpo molhado até os ossos.

Abaixei, chamei baixinho: “Vem comigo, vai.”

Ele hesitou.

Mas veio.

Subimos as escadas correndo, encharcados.

No quarto, improvisei uma cama com minha coberta velha.

Ele deitou, suspirou e dormiu como quem finalmente encontrou um lugar seguro.

Na manhã seguinte, acordei com o som de respiração ao meu lado.

Abri os olhos e ele estava ali, me olhando, quieto.

Senti algo que eu não sentia fazia meses: paz.

Chamei de Bento.

Porque apareceu quando tudo parecia torto e, de repente, tudo fez sentido.

Nos meses seguintes, ele virou meu companheiro de estudos, de risadas e até de choro.

Enquanto eu revisava apostilas e tentava não desmoronar, ele ficava deitado ao lado da mesa, com a cabeça encostada na minha perna.

Se eu chorava, ele me lambia o braço.

Se eu ria, ele abanava o rabo.

Aprendi com ele que a presença é o maior tipo de amor que existe.

Um dia, voltei da prova mais importante do curso e sentei no chão, exausta.

Olhei pra ele e chorei.

Chorei de medo, de cansaço, de saudade da minha mãe, de tudo.

E ele encostou o focinho no meu rosto, lambeu minhas lágrimas, e ficou ali, imóvel.

Eu ri entre o choro.

“Você é o único que me entende, sabia?”

Quando me formei, levei ele comigo pra colação.

Não podia entrar, claro.

Mas ficou me esperando na saída, com o rabo abanando.

Na foto do diploma, sou eu de beca, de sorriso largo — e o reflexo dele na porta de vidro.

Foi o melhor retrato da minha vida.

Hoje, faz três anos.

Eu trabalho, tenho meu cantinho melhor, e o Bento ainda dorme ao meu lado.

O pelo já tem uns fios brancos, e o olhar... o mesmo.

Toda vez que olho pra ele, lembro daquela menina perdida na calçada, e penso:

“Foi ele quem me adotou. Não o contrário.”

Na mesa da sala, onde um dia havia livros e lágrimas, agora tem uma moldura simples com uma foto nossa:

eu sorrindo, ele atento ao meu lado, a bagunça da vida espalhada em volta.

E uma frase que escrevi à mão, sem pretensão, mas com toda a verdade do mundo:

A gente estuda pra entender a vida. Mas quem me ensinou a viver foi um cachorro caramelo.



Nenhum comentário:

Postar um comentário