Quando eu entrei na faculdade, achei que o mais difícil seria entender as fórmulas, as provas, as noites sem dormir.
Mas ninguém me contou que o pior seria lidar com o silêncio da solidão.
O tipo de silêncio que grita dentro da gente, mesmo no meio da cidade barulhenta.
Eu morava sozinha num quitinete perto da faculdade.
Um cômodo, uma mesa, um colchão e uma vontade enorme de provar que eu conseguiria.
Mas, às vezes, provar algo pro mundo dói mais do que admitir que a gente precisa de companhia.
Foi numa terça-feira, voltando da aula, que vi ele pela primeira vez.
Chovia fraco, e ele estava deitado na calçada, encostado no muro da padaria.
Caramelo, magro, com o olhar de quem já tinha ouvido muitos “sai daqui”.
Parei, abri a mochila e dei metade do meu pão com mortadela.
Ele comeu, abanou o rabo devagar e ficou me olhando, como quem guarda o rosto de quem, por um instante, foi gentil.
Nos dias seguintes, ele estava sempre lá.
Mesmo lugar, mesma hora.
Eu passava e ele levantava as orelhas.
Às vezes me seguia até o portão do prédio, mas parava na calçada, como se soubesse que não podia entrar.
Comecei a levar ração. Depois, água. Depois, conversa.
“Oi, menino, dormiu bem?”
E ele respondia com aquele olhar que diz tudo sem precisar de palavra.
Um dia, chovia forte.
Tão forte que a rua parecia um rio.
Eu olhei da janela e pensei nele.
Desci sem pensar duas vezes.
Quando cheguei à padaria, lá estava: encolhido, tremendo, o corpo molhado até os ossos.
Abaixei, chamei baixinho: “Vem comigo, vai.”
Ele hesitou.
Mas veio.
Subimos as escadas correndo, encharcados.
No quarto, improvisei uma cama com minha coberta velha.
Ele deitou, suspirou e dormiu como quem finalmente encontrou um lugar seguro.
Na manhã seguinte, acordei com o som de respiração ao meu lado.
Abri os olhos e ele estava ali, me olhando, quieto.
Senti algo que eu não sentia fazia meses: paz.
Chamei de Bento.
Porque apareceu quando tudo parecia torto e, de repente, tudo fez sentido.
Nos meses seguintes, ele virou meu companheiro de estudos, de risadas e até de choro.
Enquanto eu revisava apostilas e tentava não desmoronar, ele ficava deitado ao lado da mesa, com a cabeça encostada na minha perna.
Se eu chorava, ele me lambia o braço.
Se eu ria, ele abanava o rabo.
Aprendi com ele que a presença é o maior tipo de amor que existe.
Um dia, voltei da prova mais importante do curso e sentei no chão, exausta.
Olhei pra ele e chorei.
Chorei de medo, de cansaço, de saudade da minha mãe, de tudo.
E ele encostou o focinho no meu rosto, lambeu minhas lágrimas, e ficou ali, imóvel.
Eu ri entre o choro.
“Você é o único que me entende, sabia?”
Quando me formei, levei ele comigo pra colação.
Não podia entrar, claro.
Mas ficou me esperando na saída, com o rabo abanando.
Na foto do diploma, sou eu de beca, de sorriso largo — e o reflexo dele na porta de vidro.
Foi o melhor retrato da minha vida.
Hoje, faz três anos.
Eu trabalho, tenho meu cantinho melhor, e o Bento ainda dorme ao meu lado.
O pelo já tem uns fios brancos, e o olhar... o mesmo.
Toda vez que olho pra ele, lembro daquela menina perdida na calçada, e penso:
“Foi ele quem me adotou. Não o contrário.”
Na mesa da sala, onde um dia havia livros e lágrimas, agora tem uma moldura simples com uma foto nossa:
eu sorrindo, ele atento ao meu lado, a bagunça da vida espalhada em volta.
E uma frase que escrevi à mão, sem pretensão, mas com toda a verdade do mundo:
“A gente estuda pra entender a vida. Mas quem me ensinou a viver foi um cachorro caramelo.”


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